Uma Tentativa de Explicar o que Acontece nos Times de Dados
Afinal de contas, por que tantos problemas?
Hoje quero te contar uma história que tu provavelmente já vives na tua empresa, mas talvez nunca tenhas entendido por que acontece.
É a história de como as empresas se afundam tentando ser "orientadas por dados" e acabam criando o oposto. Mais do que isso, é uma jornada que mostra como a busca errada por evidência pode destruir a capacidade de uma empresa de aprender qualquer coisa sobre si mesma.
Este é o meu entendimento atual dos estudos que venho fazendo.
Vem comigo.
Imagina a seguinte cena, que acontece em milhares de empresas: tua equipe de dados trabalha 12 horas por dia, mas a empresa sabe cada vez menos sobre si mesma. Eles recebem dezenas de pedidos por semana: "Preciso saber quantos clientes cancelaram ontem." "Qual foi o faturamento por região?" "Por que as vendas caíram 3%?"
Eles viraram uma pastelaria de dados - uma fábrica de números sem propósito.
Cada pedido é tratado como emergência. Não há tempo para perguntar se a pergunta faz sentido. Não há tempo para entender por que alguém precisa saber isso. Não há tempo para verificar se o que está sendo medido realmente importa. Não há tempo para trabalhar no trabalho - só há tempo para reagir ao que parece urgente.
Isso cria o que chamo de "ciclo das perguntas infinitas": cada resposta gera três novas perguntas, cada gráfico criado vira pedido para cinco novos gráficos, cada análise rápida vira precedente para dez pedidos iguais. A equipe fica presa reagindo sempre, nunca conseguindo construir conhecimento real.
E aqui está o problema central: sem método claro, os resultados não fazem sentido. As métricas não têm definições consistentes. O mesmo indicador pode significar três coisas diferentes dependendo de quem pergunta, quando pergunta, e qual área está fazendo a pergunta. Um "cliente ativo" para Marketing é diferente de um "cliente ativo" para Vendas, que é diferente de um "cliente ativo" para Sucesso do Cliente.
Esta bagunça não é apenas um problema técnico - é sintoma de uma empresa que não desenvolveu uma linguagem comum sobre sua própria realidade. E sem linguagem comum, não dá para ter conhecimento compartilhado.
Resultado?
O time de dados perde credibilidade. A diretoria para de ver valor nos investimentos. Os pedidos ficam mais urgentes e contraditórios. Tu começaste prometendo decisões baseadas em evidência e acabaste com um centro de custo que ninguém entende, mas todo mundo sabe que está gastando dinheiro sem entregar clareza.
O Dilema
Quando os dados perdem credibilidade, surge um dilema que vai muito além de questões técnicas:
"Confio na intuição? Confio na análise?"
Este dilema não é filosófico - é brutal e prático. Ele paralisa decisões em todos os níveis. Gestores ficam presos entre dados que não confiam e intuições que não conseguem justificar. Os chefões oscilam entre decisões baseadas em "feeling" e análises que chegam sempre tarde ou com conclusões confusas.
Pior ainda: este dilema abre espaço para que política e influência ganhem mais força que evidência.
Quando não há consenso sobre o que constitui evidência válida, as decisões passam a ser influenciadas por quem tem mais poder de persuasão, não por quem entende melhor a realidade.
Gestores, pressionados por resultados de curto prazo, desenvolvem uma postura defensiva. Eles param de assumir riscos baseados em dados incertos e passam a buscar "justificativas" - decisões que podem ser explicadas depois, independentemente dos resultados. É aqui que surge a contabilidade criativa dos dados.
Esta postura defensiva cria um ambiente onde prevenir problemas é desencorajado e resolver problemas visíveis é recompensado. Como ninguém é reconhecido por resolver um problema que não aconteceu, os gestores focam em apagar incêndios, não em evitar incêndios.
A pressão por resultados imediatos, combinada com dados confusos, cria dois erros que Deming já havia identificado décadas atrás:
Reagir a ruído como se fosse sinal (perseguir variações normais como se fossem problemas reais)
Não detectar sinais quando eles estão lá (ignorar mudanças reais no sistema)
O primeiro erro leva a "correções" constantes que não melhoram nada. Equipes passam semanas investigando por que a conversão caiu 2% em uma semana específica, sem entender que essa variação pode ser perfeitamente normal.
(eu aposto que tu já passaste por isso, mais certeiro que impostos e a morte).
O segundo erro é ainda mais perigoso: mudanças reais e importantes passam despercebidas porque estão "escondidas" entre as flutuações normais, ou porque a empresa está tão focada em reagir ao ruído que perde a capacidade de ver padrões.
Aqui entra a Regra de Joiner: sob pressão, as empresas fazem uma de três coisas:
Melhorar o sistema (a opção mais difícil e rara)
Quebrar o sistema (criar gambiarras que mascaram problemas)
Quebrar os dados (manipular números para mostrar o que querem ver)
Como não há tempo para trabalhar no trabalho, as empresas e pessoas, por estarem sob pressão, escolhem a segunda ou terceira opção.
Vamos otimizar então!
Antes de explorar mais, precisamos entender outro problema: a ilusão de que otimizar cada parte separadamente resulta na otimização do todo.
A maioria das empresas opera achando que se cada departamento der o seu melhor, a empresa como um todo vai bem. Esta ideia é não apenas falsa - é destrutiva. Deming mostrou repetidas vezes que tentar otimizar cada pedaço frequentemente piora a performance geral.
Por quê? Porque empresas são redes onde tudo afeta tudo. O que Marketing faz afeta Vendas, que afeta Sucesso do Cliente, que afeta Produto, que afeta Marketing. Otimizar Marketing para maximizar leads pode sobrecarregar Vendas. Otimizar Vendas para maximizar fechamentos pode comprometer Sucesso do Cliente. E por aí vai..Tudo está conectado.
Esta realidade foi dramaticamente ilustrada na Toyota durante a crise econômica, quando executivos da empresa reconheceram que sua obsessão por eficiência produtiva havia criado um problema: pátios inteiros com carros produzidos eficientemente, mas que não podiam ser vendidos.
Como observou um dos líderes da Toyota na época: "Produtividade não é tudo. Produzir rapidamente algo que não pode ser vendido não é produtividade - é desperdício." Esta lição custou bilhões à empresa e redefiniu sua compreensão sobre o que realmente significa otimização.
Esta interdependência é invisível quando analisamos dados em caixinhas separadas. Cada departamento vê apenas sua própria performance e otimiza localmente, criando efeitos negativos que só aparecem no nível geral.
Mais sutil ainda: a própria estrutura da empresa, que divide responsabilidades em departamentos especializados, cria vieses que impedem a visão do todo. Cada departamento desenvolve suas próprias métricas, suas próprias definições de sucesso, seus próprios modelos sobre como o negócio funciona.
O Poder de Entender Variação
Toda atividade tem variação natural, e mais importante, a variação contém informação.
Esta não é uma limitação que devemos superar - é a chave para diferenciar ruído de sinal, para distinguir entre flutuações normais e mudanças reais que requerem ação.
Shewhart percebeu que processos estáveis têm variação previsível. Não previsível no sentido de que podemos prever o valor exato da próxima observação, mas previsível no sentido de que podemos definir limites dentro dos quais a variação normal ocorre.
Quando tu entendes isso, consegues:
Saber quando uma mudança real aconteceu
Parar de perseguir flutuações normais
Entender o comportamento real do sistema
Criar expectativas baseadas na realidade (não em desejos)
Mas o verdadeiro poder não é técnico - é cultural. Quando pessoas numa empresa entendem variação, acontece uma mudança na forma como interpretam dados. Elas param de reagir a tudo e começam a agir com propósito. Param de buscar culpados para cada flutuação e começam a buscar causas reais para o que está acontecendo
Esta compreensão da variação cria a base para o que Deming chamava de "cooperação" - a capacidade de diferentes partes da empresa trabalharem juntas baseadas numa compreensão compartilhada da realidade, ao invés de competirem baseadas em interpretações conflitantes dos dados.
Esta é inclusive, a chave para acabar com a pastelaria de dados.
A Construção do Conhecimento
Quando tu entendes variação, algo muda: começas a identificar o que realmente influencia os resultados.
Não mais correlações falsas que confundem coincidência com causa. Não mais gráficos neon que mostram o que aconteceu sem explicar por que aconteceu. Tu desenvolves, aos poucos, um modelo de como tua empresa funciona - uma teoria testável sobre como diferentes ações influenciam diferentes resultados.
Este é um processo lento e humilde. Não se trata de criar um modelo perfeito de uma vez, mas de desenvolver teorias cada vez melhores sobre como o sistema funciona. Cada teoria é testada contra a realidade, melhorada, e eventualmente substituída por teorias mais precisas e úteis.
O propósito dos dados muda completamente: deixa de ser "responder perguntas urgentes de gestores" e passa a ser "buscar conhecimento" - desenvolver teorias que permitem prever os resultados de diferentes ações com maior precisão.
Esta mudança tem implicações profundas:
Primeiro, os dados deixam de ser reativos e passam a ser proativos. Em vez de explicar o que aconteceu ontem, focam em prever o que pode acontecer amanhã baseado em diferentes cenários.
Segundo, a equipe de dados deixa de ser um serviço de relatórios e passa a ser um centro de conhecimento. Sua função não é produzir gráficos, mas desenvolver e validar teorias sobre como o negócio funciona.
Terceiro, dados não substituem intuição - dados informam e potencializam a intuição. Como Deming dizia, dados são apenas mais um sentido. Eles complementam, não substituem, a experiência das pessoas que conhecem o negócio por dentro.
A experimentação torna-se uma forma sistemática de validar teorias sobre causa e efeito. Mas experimentação informada por compreensão de variação é diferente de experimentação aleatória. Ela é guiada por hipóteses específicas sobre como o sistema funciona, não por curiosidade geral sobre "o que pode funcionar melhor".
O Sistema de Conhecimento Profundo
Deming organizou seu pensamento em torno do que chamou de "Sistema de Conhecimento Profundo" - uma estrutura para entender sistemas complexos. Este sistema tem quatro partes:
1. Ver o Sistema Como Um Todo
Esta é a capacidade de ver a empresa como uma rede de processos conectados, não como uma coleção de departamentos independentes. Requer entender que otimizar o todo pode exigir aceitar performance menor em partes específicas.
No contexto de dados, isso significa que as métricas de cada departamento devem servir às métricas gerais. Um departamento pode aceitar performance local menor se isso resulta em performance geral maior.
2. Conhecimento Sobre Variação
Como discuti, é a capacidade de distinguir entre variação especial (sinais que requerem ação) e variação comum(ruído inerente ao sistema). Este conhecimento previne tanto reagir demais quanto reagir de menos.
3. Teoria do Conhecimento
Esta é a compreensão de que todo conhecimento é temporário e melhorável. Não existem "verdades finais" sobre como o negócio funciona, apenas teorias cada vez melhores que são constantemente testadas e melhoradas.
No ambiente de dados, isso significa aceitar a incerteza como parte do processo, não como uma limitação a ser superada.
4. Psicologia
A compreensão de que empresas são compostas por pessoas com motivações, medos, e limitações. Os melhores times de dados fracassam se não levam em conta a psicologia das pessoas que devem usá-los.
Isso inclui entender como diferentes tipos de métricas afetam comportamento, como a incerteza afeta tomada de decisão, e como criar ambientes onde pessoas se sentem seguras para reportar problemas e testar soluções.
Conhecimento não é nada se não for compartilhado
Conhecimento precisa circular para ser útil.
Não basta que a equipe de dados desenvolva modelos sofisticados se esse conhecimento fica isolado em relatórios técnicos que ninguém lê ou entende. O conhecimento deve ser traduzido, disseminado, e absorvido em toda a empresa.
Quando tu tens um modelo claro de como o negócio funciona, e quando esse modelo é compartilhado e entendido, as barreiras entre departamentos começam a cair. Marketing entende como suas ações afetam Sucesso do Cliente. Vendas vê como suas práticas impactam a satisfação e, consequentemente, as possibilidades de expansão. Produto entende como mudanças na interface afetam o trabalho de Suporte.
Esta visão compartilhada cria possibilidades de cooperação que eram impossíveis quando cada departamento operava com entendimentos isolados e conflitantes sobre como o negócio funcionava.
Quando o conhecimento circula, a empresa desenvolve a "inteligência coletiva" - a capacidade de processar informação e tomar decisões de forma distribuída, mas coordenada.
Esta inteligência coletiva se manifesta assim:
Decisões mais rápidas: Quando todos entendem como o negócio funciona, decisões podem ser tomadas em níveis mais baixos, porque as pessoas têm contexto para avaliar trade-offs.
Menos conflitos entre áreas: Conflitos baseados em objetivos aparentemente contraditórios diminuem quando todos entendem como diferentes métricas se relacionam no nível geral.
Inovação que surge naturalmente: Soluções criativas aparecem quando pessoas com diferentes expertises conseguem conectar insights de formas que não eram possíveis quando o conhecimento estava fragmentado.
Ironicamente, de tanto olhar os dados, as pessoas começam a acreditar mais na sua intuição (e isso é bom).
O Kaizen
O resultado desta transformação é a implementação do que Deming e a tradição japonesa chamam de Kaizen - melhoria contínua baseada em entendimento, não em reação.
Cada experimento é feito para testar uma hipótese específica sobre causa e efeito. Cada mudança é implementada com entendimento claro de como ela se encaixa no sistema maior. Cada resultado é interpretado dentro do contexto de variação normal vs. variação especial.
Dados x Sistema
Aqui chegamos à distinção mais importante:
Empresas verdadeiramente orientadas por dados não são aquelas que têm mais dados. São aquelas que entendem os sistemas que geram os dados.
Esta distinção é crucial porque resolve o paradoxo que vemos constantemente: empresas que investem milhões em infraestrutura de dados mas continuam tomando decisões baseadas em intuição, política, ou pressão externa.
O problema não é falta de dados. O problema é falta de sabedoria sobre como funciona.
Empresas inteligentes:
Não perseguem métricas - elas constroem conhecimento. Métricas são ferramentas para validar ou derrubar teorias sobre como o sistema funciona.
Não reagem a variações - elas distinguem sinais de ruído. Elas entendem que nem toda mudança requer ação, mas toda mudança contém informação.
Não otimizam partes - elas otimizam o todo. Elas sacrificam otimização local quando necessário para otimização geral.
Não buscam certeza - a verdade absoluta não existe. Elas tomam decisões baseadas em teorias bem fundamentadas, mas sempre temporárias, sobre como o mundo funciona.
Esta é a diferença entre ser orientado por números e ser orientado por compreensão. Entre ter acesso a informação e ter capacidade de transformar informação em conhecimento útil.
A transformação que descrevi não é um projeto com começo, meio, e fim. É um processo contínuo de desenvolvimento.
Empresas que completam esta jornada não "chegam" a um estado final de perfeição analítica. Elas desenvolvem a capacidade de aprender sobre si mesmas de forma sistemática e contínua.
Elas se tornam o que Peter Senge chamaria de "empresas que aprendem" - entidades capazes de adaptar seus modelos mentais baseados em evidência, capazes de questionar suas próprias premissas, capazes de evoluir suas práticas baseadas em compreensão crescente de como funcionam.
A pergunta não é se tu tens dados suficientes. A pergunta é: tu entendes o sistema por trás desses dados?
E mais importante: tua empresa está desenvolvendo a capacidade de entender a si mesma?
Parece até meio filosófico né? Tudo está conectado.
Esta é a jornada para se tornar verdadeiramente orientado por dados. Não é sobre ter mais dados. É sobre desenvolver sabedoria. É sobre transformar informação em conhecimento, e conhecimento em ação coordenada e inteligente.
É sobre se tornar uma empresa que não apenas reage ao mundo, mas que entende sua própria capacidade de influenciar o mundo - e age baseada nesse entendimento.
Heitor Sasaki
Leu até aqui? Tu és guerreira(o) hein.
Obrigado. Dá um like e compartilha, ajuda bastante.
Aqui uns materiais que podem te ajudar a entender melhor esse texto:
Mapa Mental que apresentei no Data Creators.
Audio das minhas anotações - feito no NotebookLM.
Data Creators
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Estou compartilhando mais sobre a rotina (não que seja muito interessante essa parte kk).
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Baita artigo, como sempre, mestre! Uma reflexão muito pertinente realmente é entendermos além da superfície e gerar esse ciclo de melhoria contínua em termos de processos, conhecimento. Acho que no final, tudo isso reflete amadurecimento profissional, de gestão, de negócio e entre outros. Obrigada por compartilhar sua visão sobre, sempre muito bom ler !
Uma verdadeira aula, mestre! Estou participando de um programa de Lean Six Sigma na firma e há muita conexão com o que vc falou aqui